:: Por Marli Gonçalves ::
Já era muito mais do que hora de mudar o Código Penal
Brasileiro, esse idosinho de 1940, de outra época, outros costumes, outro país,
outro mundo. Certo? Certo. Mas, como se diz, a jurupoca vai piar, o pau vai
quebrar e muita água ainda vai rolar por baixo e por cima das pontes,
quebradas, viadutos, igrejas, grupos de pressão e tudo o mais que vai tentar
meter o bedelho, melar, azedar e controlar.
Zazueira, Zazueira... Ela vem chegando, e feliz vou
esperando, a espera é difícil, mas eu espero sonhando... Zazueira...
Vai rolar cotovelada e pescoção pra tudo quanto é lado a
partir de agora. Vai, não. Já começaram a voar pedras, sapatos, impropérios e
muita bobagem sendo dita desde que, nessa semana, foi entregue no Senado a nova
proposta de reforma do Código Penal. Dona Reforma vem chegando, com suas 480
páginas. Muitas, páginas e páginas, porque isso não tem jeito: adoramos
administrar, legislar e mandar sobre tudo e todos especificamente e, ao mesmo
tempo, deixando brechas, para uma tal margem de manobra, um tal jeitinho. Pior,
nela - pra desespero social - ainda não pensaram em incluir leis básicas tipo
"é proibido homem carregar bolsa da mulher em público"(pena:
libertação do indivíduo, retenção da bolsa e multa para a mulher),
"ninguém pode, em sã consciência, ficar mais de dois dias sem lavar o
cabelo"(pena leve: trabalhos voluntários), etc. e tal, que já sei que você
deve estar pensando alguma que incluiria também.
Reforma nasceu meio
tortinha - A reforma que agora espera pela aprovação pela Subcomissão de
Crimes e Penas para começar a tramitar e existir, de verdade, vai passar muito
pano para manga, bate-boca, contenda, disputa, luta, discussão, debate, peleja,
contestação e controvérsia, o que vai atrasar ainda mais mudanças
significativas esperadas pela sociedade civil. Pelo menos a sociedade pensante.
É preciso. Porque ela nasceu mesmo meio tortinha, precisando
de uns apliques, emendas e substitutivos. Já estamos vendo as pedras das
igrejas e dogmas jogadas, especialmente contra as leis que pretendem rever
fatos cada vez mais comuns aos nosso cotidiano: versam sobre sexo,
homossexualidade e homofobia, eutanásia, ortotanásia, direito à vida e aborto,
drogas e legalização, jogos e liberação, crimes econômicos e até sobre
crueldade contra os animais. Um monte de coisas passará a ser punida mais
duramente, como bêbados assassinando no trânsito, por exemplo. Mas também tem
bullying, que não sei como vai ser encarado junto das criancinhas se
socializando e refletindo a exata sociedade bruta de seu ao redor.
Até os índios, antes tratados apenas como incapazes,
esquecidos, poderão passar a ser mais gente, mais integrados. Ficará assim: se
o índio praticar um fato considerado como crime na sociedade não índia, mas se
estiver de acordo com os costumes, crenças e tradições de seu povo, não poderá
mais ser punido. Mas terá a pena diminuída, se, em razão desses seus costumes,
o índio tiver mais dificuldade de agir de acordo com os valores e normas da
sociedade não índia. Tipo assim.
Precisamos estar
sempre atentos e fortes, de guarda! - Durante sete meses, gente muito séria
se debruçou sobre essa reforma, capitaneados pelo respeitado Ministro, hoje
presidente do Superior Tribunal de Justiça, STJ, Gilson Dipp. Quinze deles
foram até o final, sendo que entre estes há apenas duas mulheres, a procuradora
Luiza Eluf e Juliana Garcia Belloque, defensora pública, o que já mostrará uma
balança meio desengonçada para o lado feminino e nossas prerrogativas.
Só que tem muita gente que parou no tempo. Que, se possível
fosse, andava para trás, e não seria para rejuvenescer, não. Tem horror à
mudança. Que pensa que qualquer liberação trará efeitos catastróficos e que o
mundo irá virar ao contrário, ter uma hecatombe, ficar quadrado e de cabeça para
baixo, caso ocorra. Que ninguém vai mais nascer se o aborto for liberado. Que
todo mundo vai enrolar um charutão de marijuana com página de Bíblia e sair por
aí, cantando reggae, molengão, ou que os canteiros das ruas serão substituídos
por plantações, onde haverá colheita fácil. Que menores de idade serão içadas
para a prostituição (como se acaso hoje houvesse alguma ação efetiva contra a
famigerada prostituição infantil), e os doentes que estiverem em estado
terminal, e não quiserem paliativos, serão muitos, aos milhares. Pensam também
que milhares de mulheres alugarão, com plaquinhas, seus úteros, anunciados em
jornais, especialmente os voltados aos gays. Que a família será destruída por
algum tipo de devassidão que se alastrará.
Menos, menos. Muita gente colaborou nessa produção. Os
juristas pediram palpites ao respeitável público e dizem que receberam mais de
três mil sugestões, que eu bem queria ver a lista completa de sandices e
curiosidades que devem ter chegado, com abaixo-assinados e tudo.
O que anda mesmo me preocupando e vai acabar me fazendo ler
as tais 480 páginas é que parece que tem umas incrustações esquisitas na Dona
Reforma, ali pelo meio de tantos artigos e parágrafos, o que no país do "O
rei sou Eu", na cabeça de algum atormentado, é coisa que pode vir a ser
usada contra minha categoria profissional, contra a comunicação e o jornalismo.
Aí já me invoquei. Precisamos estar sempre atentos e fortes, de guarda, pela
nossa soberania. Pela nossa liberdade.
Principalmente unidos pela aplicação de bom senso. Às vezes
não adianta fazer plástica total, mas usar bons produtos que acabem com as
rugas que o tempo já fez nesse nosso velho amigo Código Penal, sempre usando
sua experiência e vivência.
No fim, vou mesmo torcer para que o casamento entre a Dona
Reforma e o Senhor Código Penal seja feliz para sempre. No civil e no
religioso. São Paulo, onde a jurupoca já está piando, 2012
Marli Gonçalves é jornalista. A propósito, jurupoca,
jiripoca ou jerepoca é um peixe que pia. Parece passarinho que bebe de outras
águas.
(Fotos: Nelson Jr./SCO/STF/divulgação e
arquivo pessoal)