[15/6 - mococa24horas] “Eu tenho doutorado e não sei fazer
algumas dessas questões”, “provas mal feitas”, “correções de cursinho”. Era só
o cafezinho e a discussão já estava a todo vapor, o prenúncio do clima e do tom
que permeariam todo o encontro. Ao fundo, uma charge projetada: “Nosso sistema
educacional em uma imagem”. Um examinador, sentado em sua mesa, orientava os
concorrentes – um pássaro, um macaco, um pinguim, um elefante, um peixinho, uma
foca e um cachorro – sobre a prova que aplicaria, dizendo que “para uma seleção
justa, todos farão o mesmo exame: escalar aquelas árvores”. Pronto, estava
armado o cenário em que alunos de pós-graduação da Física, Química e Biologia
avaliariam o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Perguntas confusas, conteudistas, descoladas da realidade ou
que não avaliam o que deveriam. Esse foi o quadro geral apontado pelos alunos,
que se propuseram a discutir o Enem a partir dos itens das provas e não de
questões sobre o exame em
si. Avaliar não a que se propõe o Enem, mas o que está
acontecendo na prática. “Não se fala muito nesse assunto, fala-se em quebra de
sigilo, sistema do Sisu [Sistema de Selação Unificada], correção das provas”,
explica Maria Regina Dubeux Kawamura, uma das professoras orientadoras do
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências.
Ela explica que existem, basicamente, três tipos de
avaliação. A formativa tem como foco o aprendizado do aluno e o método utilizado
é a aplicação de provas e trabalhos. Avaliações seletivas funcionam para, como
o nome sugere, selecionar concorrentes em concursos e vestibulares a partir de
um perfil pré-determinado. Por fim, há os exames institucionais, que servem
para adequar e avaliar empresas, universidades e projetos. O Enem ficaria nesse
limbo. É institucional porque faz ranqueamento de escolas. É seletivo porque,
pelo Sisu, funciona como “vestibular” para universidades federais e pretende-se
também formativo, já que o exame seria, em sua essência, uma maneira de os
alunos medirem o próprio conhecimento. “Mas ele não pode ser essas três coisas
ao mesmo tempo”, alerta Maria Regina.
Enem: prova seletiva - O Enem surgiu em 1998, com caráter formativo: será que
existe um jeito de se avaliar alguém com o sujeito se colocando e apresentando
suas competências, e não se baseando apenas na cobrança de conteúdos? “Não é
que escolas diferentes seriam avaliadas com qualidade diferente”, explica a
professora, mas alunos com históricos e vivências diversos seriam igualmente
passíveis de avaliação. É aí que, no lugar do conteúdo, aparece a noção de
“competências”, presentes até hoje no exame.
Maria Regina observa, porém, que pelo menos em seu campo de
trabalho, a física, a lista de “conteúdos” divulgada pelo Enem inclui os temas
mais tradicionais possíveis e não cita física moderna, embora haja na prova
muitas questões cobrando esse tipo de conhecimento.
A matemática, área que permeia os três setores da ciência
envolvidos no programa, também é motivo de discussão. Isso porque dividindo o
número de questões pelo tempo de prova, Maria Regina aponta uma média de três
minutos por questão. “No geral, só para ler as questões já é gasto bem mais do
que isso”, ela observa. Os doutorandos acreditam que não há tempo suficiente para
se fazer a prova e ressaltam também que questões da área de humanidades possuem
enunciados ainda mais longos. O desgaste dos concorrentes seria muito grande.
Do auditório, alguém anuncia: “É uma violência!”,
referindo-se exatamente a esse problema, a contextualização e formulação das
perguntas. A intenção da prova era que, lendo, interpretando e entendendo as
informações contidas e explicadas nas questões, sem a necessidade de decorar
nada, o estudante fosse apto a responder o que era perguntado. No entanto, os
alunos da pós-graduação concluem que os enunciados são, em geral, confusos e
longos, sendo preciso lê-los várias vezes para compreender ou então
simplesmente não ler nada.
Esta é a “solução” apontada por um doutorando de biologia e
também professor: “Infelizmente, é isso que falo para os meus alunos: não leiam
tudo, vejam a pergunta objetiva e aí, sim, se não conseguirem responder a
questão, voltem para ler todo o enunciado”. Com essa “tática”, a parte
formativa da prova deixou de existir, ela torna-se meramente seletiva,
“conteudista”.
Segundo Maria Regina, o nível de acerto de várias questões
do exame de 2011 foi inferior a 10%. Ela reclama da dificuldade em se ter
acesso a esses dados estatísticos: “Por que não se publica questão por questão
o nível de acertos? Porque é uma vergonha, seria expor demais o problema”, ela
afirma e completa: “Uma prova dessas para mim é um escândalo. Vários
professores reclamam por diversos motivos, mas não se unem e se posicionam em
conjunto”. Para a professora, deveria ser uma preocupação de todos os
educadores olhar as provas e se organizarem: “É preciso algum tipo de movimento
– que eu ainda não exatamente qual – para a melhoria dessas questões, devemos
pensar mais na ferramenta Enem, já que ele aparentemente veio para ficar”.
Maria Regina acredita que falta nas escolas um posicionamento crítico de que
aquilo não reflete a realidade, “mas muitas escolas estão ocupadas atualmente
em apenas garantir seus rankings”, ela critica. (Foto: Marcos Santos/USP
Imagens)
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